quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Médico aborda comunicação no tratamento oncológico

Apresentado como um guia, o livro "A comunicação médico-paciente no tratamento oncológico", escrito pelo oncologista Ricardo Caponero, é uma preciosa ferramenta para todos aqueles que se veem envolvidos com o câncer, útil não apenas a médicos como também a familiares, demais profissionais de saúde e pacientes. A publicação é da MG Editores. Bastante simples na apresentação, a obra contém mais que o essencial para tentar facilitar e favorecer o diálogo tão importante tanto no processo de enfrentamento da doença quanto na aceitação de situações irreversíveis.
A morte, o grande tabu humano, é revestida de preconceitos, mitos e desencontros que também são comuns diante do diagnóstico do câncer, seja ele de que tipo. A própria palavra assusta, levando alguns a evitá-la, referindo-se a "aquela doença" ou algo assim, como se o próprio pronunciar fosse atrair tamanho mal. Muito dessa aura fantasiosa é produzida pela barreira do silêncio.
A tentativa de Caponero é apresentar caminhos para romper com o que ele chama de "conspiração do silêncio", contexto em que não se fala ou fala-se pouco sobre a situação real que transforma a vida daquela pessoa e de seus familiares, alterando suas rotinas nos períodos de internações e exigindo recursos emocionais para essa difícil adaptação. Adotar uma comunicação clara e objetiva se impõe como necessidade durante o tratamento, desde a primeira consulta. Também apresenta benefícios, aliviando angústia, promovendo conforto, favorecendo o processo de cura ou, quando ela não é possível, a morte digna.
Como jornalista, e até por ter exercido o cargo de coordenadora de comunicação de um hospital por cinco anos, achei muito interessante o livro. Entendo que grande parte dos problemas em saúde é gerada por falhas na comunicação e ausência de um diálogo honesto, sensível e objetivo. Muitas vezes tudo o que o paciente precisa é ser ouvido, ainda mais quando se luta contra uma doença tão complexa como o câncer - uma conversa pode ser terapêutica. Os familiares, exaustos e confusos, precisam de dados e orientações que os ajudem a apoiar o paciente. Por isso recomendo a leitura aos médicos em geral, mesmo aqueles que não atuam nesta especialidade, que certamente se sentirão mais seguros na forma de conduzir a comunicação, especialmente a de notícias difíceis, com seus pacientes e familiares.
Caponero é graduado pela Faculdade de Medicina pela USP e especialista em Oncologia pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, entre outros títulos. Apesar de seu currículo, sua escrita é fluente, acessível a todos os públicos e agradável de ler. Mais que isso, reflete um modo humanizado e holístico de se praticar a medicina, em que o paciente não se reduz a um quadro clínico ou um prontuário, mas é visto como um ser humano em suas múltiplas diversidades, e o médico deixa de ser uma espécie de mito para se apresentar como pessoa. Trata-se de uma bela contribuição à área da saúde.

domingo, 27 de setembro de 2015

"O Guardião Invisível" abre trilogia de Dolores Redondo

Os elogios da capa, atribuídos a El País, não traduzem minha impressão sobre "O Guardião Invisível", primeiro romance da trilogia sobre o trabalho da investigadora Amaia Salazar no vale do rio Baztán. Chego à página 360 com o incômodo de uma obra potencialmente boa que vai se confundindo a ponto de chegar ao vazio dos lugares-comuns. Não gostei do livro, apesar da leitura agradável pela escrita equilibrada. Poderia ter apreciado muito mais. Certamente não será daqueles livros que parecem eternos em minha memória.
Criada pela escritora Dolores Redondo, Amaia fascina como a mistura de policial destemida e mulher frágil, pelos momentos de paixão ao seu fiel marido, pelos erros e acertos que fazem dela uma pobre mortal e, ao mesmo tempo, a heroína que persegue a justiça. Porém, em "O Guardião Invisível", o primeiro que li da escritora que se dedica à gastronomia, notei que o enredo vai tomando formas tão díspares que se perde numa trama que tinha tudo para ser ótima, mas decepciona nos minutos finais, como aquele corredor que inicia na frente de todos e perde o impulso perto da chegada.
A história gira em torno da investigação, por Amaia e sua equipe masculina de inspetores, de crimes cometidos a adolescentes. O criminoso, que tudo leva a crer ser um serial killer, tem uma assinatura especial: um doce típico que deposita no ventre de suas vítimas. O crime faz ela voltar à sua cidade de origem, o pequeno povoado de Elizondo, e se confrontar com um passado traumático que a persegue desde a infância. No decorrer das páginas, ora acompanhamos a ação da investigadora, diretamente ligada às relações familiares e às crenças folclóricas locais, ora espreitamos Amaia ainda menina na doceria (!) que pertenceu a seus pais.
No povoado, com seu marido à tiracolo, a policial retoma suas origens na atualidade e é assolada por terríveis pesadelos que precisa esclarecer. Inicialmente cética em relação ao que não pode explicar, vai sucumbindo às crenças populares até abraçar seu lado místico. Outro aspecto obscuro que precisa lidar é a razão que a impede de engravidar, situação compartilhada pelas irmãs.
O livro é um romance policial, mas também ficção fantástica, onde a realidade não é relatada em fatos consistentes que nos convencem, mas flerta com seres lendários e o poder dos oráculos. Como disse, tem todos os ingredientes para uma receita de sucesso, mas o bolo infelizmente não cresceu. As únicas partes do livro que me fizeram pensar foram as que abordaram o quanto uma criança pode ser marcada por acontecimentos que fogem a seu controle, como um transtorno mental, por exemplo, sem contar com a proteção de adultos que deveriam estar a seu lado, mas preferiram se esquivar em nome da segurança das convenções sociais.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

"A Jornada de Felicia" - Trevor fora dos contos

Minha incursão pela obra do escritor William Trevor não foi pelos contos que o fizeram famoso, mas por um romance, "A Jornada de Felicia", publicado pelo selo Biblioteca Azul.
Trevor, que nasceu e passou quase toda vida em pequenas cidades da Irlanda, é também autor de "A história de Lucy Gault", que está na minha lista de desejos.
Antes de ler, costumo flertar com o livro em mãos logo após abrir a embalagem, já que quase todos adquiro por lojas virtuais, escolhendo pelas sinopses e títulos. Acho que a cor das páginas, a fonte das letras e a capa são importantes elementos nessa íntima relação entre autor e leitor. Neste caso, trabalho bem-feito da editora, com papel de qualidade, cores em harmonia, bela edição e uma capa que expressa bem o tom de mistério da história. 
Felicia, a personagem principal, deixa sua família numerosa na Irlanda e parte sozinha para Inglaterra, em busca do namorado que a engravidou. O rapaz disse-lhe apenas que trabalhava numa fábrica e assim, sem endereço nem informações consistentes, a garota de apenas dezessete anos se aventura nesta jornada que a faz diferente, que a transforma lentamente, quase sem que ela própria pudesse perceber. A viagem, entretanto, não tem a alegria de uma aventura, mas a premência de uma necessidade até incômoda.
Acompanhamos, nesta leitura ágil, a ingenuidade da garota, sua quase indestrutível esperança e a firmeza de seu caráter no processo de ruptura que marca a entrada para a vida adulta, ao mesmo tempo que a vemos cair em ciladas próprias da inexperiência, emergindo mais madura de seus erros para reconstruir uma realidade sonhada com aquilo que se apresenta no real. Um parênteses: impossível não se identificar com a adolescente Felicia quando olhamos para trás e percebemos nós mesmos, hoje sensatos adultos, no tempo em que tudo era possível. Chega a dar uma certa dor, o pesar pelas ilusões perdidas.
Simultaneamente conhecemos mr. Hilditch, um homem comum e estranho que surge na vida de Felicia e se oferece para ajudá-la a encontrar o namorado. Suas buscas se cruzam e nesse encontro vamos entrando numa trama envolvente, no ritmo crescente de um bom livro de suspense. Trevor nos coloca a par da vida provinciana de um pequeno povoado, desnudando um perfil que nada tem de pacato, em conflito com a solidão que marca os relacionamentos em cidades maiores. E na banalidade de ignoradas existências desnuda o que há de melhor e pior no ser humano. 
Gostei muito da experiência, certamente vou comprar outro romance de Trevor. Seu texto é objetivo, conciso e ligeiro, qualidades que aprecio. O final é coerente, embora não seja o ideal. Mas desejo muito descobrir seu lado contista, aguardando, ansiosa, a aquisição de seus Contos Completos.