terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Precisamos falar sobre o Kevin - Lionel Shriver



Enrolei muito até decidir comprar o livro "Precisamos falar sobre o Kevin", bem antes de saber que havia a versão em filme (que, aliás, não gostei). Nunca tinha lido nada de Lionel Shriver, que hoje está entre minhas autoras preferidas, e este seu sétimo romance me foi marcante. Demorei porque achei o tema chocante demais: a sinopse falava da mãe de um garoto que cometeu um massacre na escola. Por fim, comprei e digo-lhe: este livro me abalou tão profundamente que não consegui seguir a sequência habitual de leitura. Comecei, avancei, parei em momentos de indignação com a personagem principal, a mãe, chamada Eva. Prossegui, parei por sentir tão claramente situações que eu mesma enfrentei no papel de mãe, avancei novamente. Levei um longo tempo até o final surpreendente.
Para quem gosta de leitura ágil, "Precisamos falar sobre o Kevin" pode parecer cansativo porque Shriver esmiúça, disseca, põe o dedo no fundo da ferida que é ter um filho que contraria todas as suas expectativas. Em longas cartas ao pai do menino, com quem casou, Eva conta detalhadamente suas origens, como era sua vida antes do casamento, o período de namoro, a união, a gravidez e o nascimento de Kevin ao mesmo tempo em que relata como conseguiu sobreviver à tragédia, as humilhações, a culpa, a reflexão de quem permanece atônita diante do impossível que se revela real.
Nestas narrativas, a leitora (porque acho que é um livro escrito sobre e para mulheres, apesar de ser interessantíssimo que os homens o leiam) se reconhece num retrato atual dos pequenos dramas da vida cotidiana, com um pé na carreira, outro na família; entre o amor pelo marido e a revolta por sua falta de participação; a idealização da maternidade e a realidade inesperada; os sonhos e as renúncias, inclusive de partes de si mesma, que tem de fazer em nome do amor incondicional. 
No fluxo perfeito da narrativa, Shriver faz rir com seu humor ácido, por vezes negro, e também chorar. Acho que ela tem a rara habilidade de descrever os sentimentos que nós, mulheres, tentamos ocultar de nós mesmas e do mundo, sentimentos que vozes internalizadas gritam ser negativos, como a raiva, a inveja e a cobiça. 
Em "Precisamos falar sobre o Kevin", percebemos uma mãe insatisfeita e aflita, perdida e sobrecarregada, distante de si, e seu encontro com um bebê diferente, em quem projeta suas próprias dificuldades emocionais. Qualquer reação da criança revela um lado de si mesma que ela não quer encarar (lembrei agora do livro chamado "Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra", de Laura Gutman, para quem quer se aprofundar). O relacionamento conturbado de Eva com o filho, que cresce, é acentuado com a chamada crise da adolescência e o nascimento da filha, Celia, a doce menina que veio restaurar a confiança de Eva em si mesma e confirmar a negatividade congênita de Kevin. A situação nesse relacionamento disfuncional vai se complicando cada vez mais, tendo como apogeu o crime praticado por Kevin e a frieza do adolescente diante de seu ato. Intenso, denso, trágico.
Não é uma leitura fácil. Chorei muitas vezes e fiquei perplexa com a profundidade deste livro que ganhou o Prêmio Orange de 2005. Talvez por isso não tenha gostado do filme, apesar do papel de Eva ter sido interpretado pela talentosa Tilda Swinton, indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz. São questões demais para os limites de uma filmadora.
Pode uma mãe ter amor e ódio por seu filho? Até onde vai e qual a real face do amor de mãe? Perguntas que me fiz ao terminá-lo. Concluí que Shriver fala de amor materno, mas não do amor mitológico e cultural, aquele amor de cena de novela em que, depois um parto doloroso, a mulher chora de emoção e abraça seu filho perfeito. Eva desnuda o amor bruto, imperfeito, ambíguo, inteiro, que machuca e que, mesmo assim, contrariando todas as possibilidades, nos revela o melhor de nós mesmas. O amor da mãe que chora quando todos esperam que ela ria, que recusa os papéis sociais que a obrigam ter, que não consegue dar aos filhos tudo que eles precisam e ousa dizer, em alto e bom som: "Mãe não é divina; mãe é humana!".

("Precisamos falar sobre o Kevin", Lionel Shriver. Intrínseca)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Livro do Cemitério - Neil Gaiman



Famoso pela série Sandman e referência em histórias em quadrinhos, o inglês Neil Gaiman escreve geralmente para crianças e adolescentes sobre temas incomuns como mitologia e terror, mas também produz livros em prosa e poesia para pessoas de todas as idades. Gosto da sua linguagem simples e fluída, mais ainda da criatividade e imaginação.
Depois de ler "O Oceano no Fim do Caminho", comprei "O Livro do Cemitério" pelo tema central: a morte. Achei interessante a sinopse. A história gira em torno de um bebê que sobreviveu à execução da família ao, casualmente, chegar a um cemitério próximo, onde foi salvo e adotado por seus estranhos habitantes para crescer e, enfim, desvendar o que motivou o homicídio. O problema é que ele, mesmo sendo protegido por aquela comunidade esquecida, vivendo em harmonia com os mortos, um dia terá que enfrentar a vida fora do cemitério e o perigo que nunca o deixou, assumindo sua condição de vivo. 
Do crime hediondo, descrito nas primeira páginas do livro, somos levados a conhecer Jack, o homicida. Contrariando todas as possibilidades, o vilão não consegue finalizar seu trabalho porque o caçula da família escapa engatinhando para a rua e de lá para o cemitério. Quando as criaturas fantásticas percebem a chegada da criança que está com a vida em risco, elas se reúnem e decidem, por regras próprias, se devem ou não ajudá-la, o que implica em aceitar algo novo. Receber o bebê, e mais que isso, adotá-lo, como deseja um casal de fantasmas que logo se candidata, exige a exposição de um universo fechado, secreto, o universo dos mortos e dos seres não-humanos, à convivência com os vivos. Mas o amor e a solidariedade vencem a autoproteção.
Engraçadas são as formas que os fantasmas e seres deste mundo paralelo encontram para satisfazer as necessidades do menino, que passou a ser chamado de Ninguém Owens, como o aleitamento, por exemplo. Eles vivem em suas tumbas e não necessitam, como os mortais, de comida, escola e trabalho. Vivem um cotidiano repetido, lembrando do quem foram em vida, e o menino se desenvolve neste cenário, aos cuidados dos pais fantasmas adotivos e sob a proteção de um tutor, Silas, que não é morto, nem vivo. Silas passa a amar o menino de tal forma que o prepara para a independência e a inevitável dor da partida (se para nós morrer é partir, para Owens viver é partir).  
Aos poucos, o menino cresce sob a tutela de seres fantásticos até que terá de esclarecer e encarar sua vida de mortal, decifrando enigmas e construindo sua história. Surgem figuras femininas para acompanhá-lo nesse processo de amadurecimento. 
O medo de Owen não é da morte, como todo mortal, porque para ele a morte é aconchego e segurança, o que lhe é familiar e querido. Seu medo é da separação. Mas sob as mãos afetuosas dos mortos e de Silas, seu mentor e guardião, ele terá que desenvolver a coragem de romper com o conhecido, avançar os limites do cemitério num caminho inverso ao que fez quando bebê, e aprender a viver.
Um presente ao leitor são as belas ilustrações que acompanham os capítulos, feitas por Dave McKean.
Acho que o livro é uma linda fábula sobre o amor incondicional, as perdas necessárias e a tolerância com as diferenças, abordando a morte de um ângulo ingênuo e até lúdico, mas muito delicado. Amei.

("O Livro do Cemitério", Neil Gaiman. Editora Rocco, selo Jovens Leitores)

sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Redentor - Jo Nesbo



Ex-jogador, economista, compositor de banda de rock. Descrever Jo Nesbo (desculpe, não consegui escrever o "o" partido do alfabeto norueguês) é tão difícil como entender o investigador Harry Hole, seu principal personagem. Dependente de álcool e drogas, mal amado, negligente e até autossabotador, lidera investigações policiais bem-sucedidas graças a seu talento, coragem e disposição para riscos. As aventuras de Hole nos thrillers de Nesbo são complexas, meticulosas, densas.
"O Redentor" começa com o estupro de uma menina de 14 anos em um acampamento de verão do Exército de Salvação. Doze anos depois, no show de Natal organizado pela mesma entidade, um de seus participantes é executado no meio da multidão por um matador de aluguel. Ambientado em Oslo, o livro é dividido em partes, abordando histórias que se cruzam enquanto a investigação de Hole tem seu curso.

"Andou pelo bosque com neve até o joelhos, e lá ficou sentado vendo o dia amanhecer. Esperava que o frio congelasse, aliviasse ou pelo menos adormecesse seus sentimentos"

Eu gostei demais, do começo ao fim. Acho que Nesbo tem um estilo meio seco que combina com seu personagem. Hole anda pelo submundo do crime, tenta se salvar de seus próprios fantasmas, vive correndo atrás da mulher pela qual é apaixonado e, sem sucesso, busca conciliar profissão com vida pessoal, velho dilema. É uma espécie estranha de herói, vive em bares, meio destruído, atormentado pelo que não conseguiu fazer bem. Daqueles caras que a gente quer salvar de si mesmo.
Na relação com o trabalho, Hole enfrenta ainda relacionamentos conflituosos com colegas e superiores, despertando a ira de alguns que, embora pareçam cidadãos de respeito, não são. Isso é interessante: Hole, apesar de incorrigível e de seus vícios, tem uma alma pura.
O legal em "O Redentor" é que questões religiosas são discutidas ao avançar da investigação, descoberta e perseguição ao criminoso. O certo e o errado, distorcidos pela rigidez de dogmas, pela condenação de pecados. Quem é quem numa organização que prega a solidariedade e o que se pode fazer de ruim sob o manto de uma boa imagem.
Legal a capa, que tem tudo a ver com a história.
Aproveite cada página. Nesbo é mestre no policial.

("O Redentor", Jo Nesbo. Editora Record)

Marina - Carlos Ruiz Zafón



Comecei a ler Carlos Ruiz Zafón pelo romance "Marina". E foi o melhor livro que eu li do autor de sucessos como "A Sombra do Vento" e "O Jogo do Anjo". Na Nota do Autor, ele explica que este quarto romance publicado foi concebido para leitores jovens com a esperança de ter um apelo para gente de todas as idades. O resultado foi um livro simples, mas daqueles que você tem saudade quando fecha a última página.
"Marina" mescla aventura, suspense, ficção fantástica e romance. Relatado em primeira pessoa por Óscar Drai, um menino órfão que desapareceu do internato onde estudava por uma semana, aborda suas aventuras ao conhecer Marina, uma garota misteriosa, que supre sua ânsia por liberdade e amor. Juntos, eles passeiam por lugares inusitados, enfrentam situações surreais e firmam uma amizade eterna.

"Marina me disse um dia que a gente só se lembra do que nunca aconteceu. 
Ainda ia se passar uma eternidade antes que eu pudesse compreender essas palavras"

Quantas vezes, na infância que nos permite fantasiar com liberdade, a gente imaginou coisas que não existiram ou fingimos não ter vivido coisas que não deveriam ter existido? Outro dia li uma explicação psicológica sobre o quanto do que lembramos realmente nos aconteceu quando crianças e o que aconteceu mas a gente apagou da memória. Ficaríamos surpresos se pudéssemos ver um filme do nosso passado como ele realmente aconteceu e a interpretação que damos para nos proteger da dor, sobreviver a ela. O que guardamos naquele lugar escuro e de difícil acesso que é o inconsciente?

"O tempo não nos torna mais sábios, apenas mais covardes"

Ler "Marina" é voltar àquele período mágico entre o fim da infância e o começo da vida adulta, é um confronto com a magia da imaginação que torna a vida mais leve e que precisamos resgatar para sermos plenos. Um delicioso passeio por uma Barcelona gótica, romântica e imersa na densa névoa de um tempo que não volta mais. E talvez nunca tenha havido.

("Marina", Carlos Ruiz Zafón. Suma de Letras)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Ratos



Este livro me prendeu do princípio ao fim. Fui fisgada pelo ritmo ágil de Gordon Reece em seu primeiro romance e pelo enredo, que, embora não seja original, traz consigo reflexões muito interessantes numa época em que a violência se banalizou.
Aborda intolerância e resistência, violência e paz, ódio e amor, segredos e o acaso, este acaso que muda tudo numa fração de segundos. Também fala do que somos: nem anjos, nem demônios; nem ratos, nem gatos. Seres duais, não raro antagônicos, em que a humanidade às vezes se depara com a sobrevivência. É neste conflito que o livro age sobre o leitor.

"Quando um gato entra na toca dos ratos, 
ele não vai embora deixando-os ilesos. 
Eu sabia como aquela história iria terminar. 
Ele mataria nós duas"

"Ratos" foi escrito em primeira pessoa. Quem narra é a adolescente Shelley, que vive com a mãe. Logo no início, a garota descreve a casa ideal que as duas encontram para finalmente viver em paz: confortável, aconchegante e isolada. A casa perfeita na verdade é o refúgio que mãe e filha buscavam depois de muito sofrimento na cidade, principalmente Shelley, pelo bullying que sofria de ex-colegas na escola e que quase culminou em tragédia, inviabilizando seu estudo em sala de aula.
Acostumadas a suportar humilhações, a aceitar a dor imposta pelos outros como parte da "lei do mais forte" e a se resignar à condição de pessoas frágeis e pacíficas, decidiram abandonar tudo que tinham em busca do isolamento que lhes garantiria a tão sonhada paz. Condenadas ao exílio, vitimizadas e duplamente penalizadas, elas queriam tranquilidade e segurança para viver com simplicidade, sem prejudicar ninguém. Elas se bastavam pelo amor mútuo, e tudo estava ótimo.
Mas no aniversário de dezesseis anos de Shelley algo mudaria o que elas construíram. O paraíso foi ameaçado, assim como suas próprias vidas. Se na primeira parte do livro a revolta diante do penoso cotidiano da adolescente e sua mãe nos provoca uma enorme inquietação, na segunda parte do livro a narrativa se torna vibrante e tensa a cada página, que eu devorei com entusiasmo.
Recomendo o romance de Reece para quem deseja um livro bem escrito, num ritmo de suspense que me surpreendeu. Pelo preço de promoção que estão vendendo em lojas virtuais, é uma excelente aquisição.
A partir de um acontecimento que parece até banal de tão frequente em noticiários policiais de emissoras de tevê, acompanhamos a transformação (ou a revelação) de duas mulheres para além das suas próprias identidades.
Aguardo, ansiosa, mais livros deste autor.

("Ratos", Gordon Reece. Editora Intrínseca)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Dupla Falta


"Dupla Falta", assim como outros livros de Lionel Shrider que tive oportunidade de ler, evoca nossos próprios sentimentos humanos quando ela disseca personagens comuns, banais, que poderiam ser nós mesmos porque já passamos por isso (principalmente quando se tem, como eu, mais de 40). Quando falo nós, refiro-me especialmente às mulheres. Porque Willy é a personagem central do livro, uma tenista jovem que se vê entre viver um grande amor e seguir uma carreira brilhante contrariando todas as probabilidades. Se dependesse do apoio da família, idade, condição financeira, já estaria fora das quadras, ou melhor, nem teria entrado. Mas a moça foca seu objetivo e luta para chegar entre as melhores. Jovem demais para a vida, no limiar da velhice para o esporte, Willy se concentra de forma hercúlea na base do seu mundo idealizado: o tênis, e se confunde com ele. Não há mais limites, eles se fundem numa coisa só.
Mas eis que surge na sua vida organizada, segura e metódica, criada sob medida para um fim específico (a vitória), um rapaz chamado Eric que - bingo! - adora jogar tênis. Não como ela, amalgamada no esporte, mas sob um olhar diferente: autônomo, independente. Seguro de si, ele tem tudo que Willy não tem (apoio da família, dinheiro, um corpo mais forte) e vê o tênis como um meio para a felicidade, não como um fim em si mesmo. Enquanto a paixão começa sorrateira a se infiltrar pelo universo de Willy, transformando-se num amor irresistível, sua própria autoimagem é posta à prova.
Confesso que "Dupla Falta" foi o livro mais leve de Shrider que eu li, depois do soco no estômago que é "Vamos Falar com Kevin" e do afago que me deu "Tempo é Dinheiro". Mas é de uma leveza estonteante, arrastado como o cotidiano feminino. A autora diz, logo no começo, que se trata mais de um livro sobre casamento do que sobre tênis, o que é verdade - portanto, esqueça o linguajar e expressões técnicas e regras, são somente pano de fundo para um assunto mais profundo: a condição feminina. 
Eu diria que é mais um livro sobre as escolhas que as mulheres fazem e, mais ainda, sobre uma questão que me debato faz tempo: por que insistimos em nos condenar ao "ou" quando poderíamos, como os homens, optar pelo "e"? O que está por trás do sacrifício? Ou do próprio amor? São questões que refletimos no decorrer do livro, pois Willy e Eric são polos semelhantes por compartilhar o gosto pelo esporte, temperado com histórias diferentes, personalidades plurais e propósitos de vida únicos. O desafio parece ser o próprio cotidiano, sobreviver às próprias exigências (mais que às dos outros), ter e exercitar empatia, o amor incondicional. Lemos o livro como se assiste a uma partida de tênis - quem sabe se identificando com um jogador e torcendo pelo outro, como foi meu caso. 
Falar do texto de Shrider é dispensável, visto que ela é mestra na linguagem fluída, ótima como sempre na construção dos capítulos. A leitura não cansa, mas também não empolga como num thriller. Segue o ritmo da vida com seus altos e baixos.
Recomendo o livro para amantes de obras que nos empurram para além da superfície da água, revelando o que buscamos esconder sob a máscara social. Valeu para mim. Emergi de suas páginas mais leve e verdadeira. 

("Dupla Falta, Lionel Shriver. Editora Intrínseca)

    Tempo é Dinheiro




      Admiro o trabalho da escritora Lionel Shriver pela capacidade que ela tem de construir personagens que poderiam ser eu ou você, comuns, mas que se revelam tão especiais. Humanos, banais, mortais e singulares.
      "Tempo é Dinheiro" me fisgou pelo tema: morte. Sou atraída pela morte, leio sobre a finitude, não no sentido mórbido, mas no sentido libertador da palavra. A morte é, até mais que o sexo, um assunto difícil. Talvez seja nosso último tabu. Acomete a todos, mas todo mundo finge que só vai acontecer com os outros. Voltando ao livro, a obra utiliza a morte como tema principal, mas, na minha visão, aborda principalmente as escolhas. 
      Ao contrário do que li em muitas sinopses, não acho que se limita a ser uma crítica ao sistema de saúde norte-americano. Shriver se utiliza desse cenário para tecer o dilema do personagem principal, o bom Shep, que sonha escapar da mediocridade de um emprego que detesta e finalmente realizar seu sonho de viver num lugar simples, natural e belo. Um desejo prorrogado, adiado, em nome da passividade segura, da covardia que lhe serve de abrigo e das escolhas que fez. Esse lugar tem nome: Pemba, na África, continente que conheceu ainda criança ao lado do pai, um pastor, eternizado em suas lembranças.
      Como tantas vezes na vida, principalmente quando a meia-idade se aproxima, cresce o desejo de Shep de concretizar seu sonho, planejado há tempos e razão de um dinheiro guardado numa conta secreta para esse fim. Ele vende sua empresa, mas acaba ficando mais um pouquinho, como empregado, suportando humilhações e pressões do seu ex-empregado, agora patrão. O limiar de tolerância chega a níveis estratosféricos e quando ele, pressionado por si mesmo, resolve finalmente romper com a sofrida cadência de dias insuportáveis e anunciar sua libertação, para alegria de seu melhor amigo, quem sabe o único, uma mudança se impõe. Ele compra as passagens para ele e sua família, pede demissão, faz as malas. Quando anuncia à esposa, Glynis, sua decisão, ouve dela que está seriamente doente e precisa, mais que nunca, do plano de saúde da empresa. Shep então precisa decidir o que lhe é mais importante e o caminho a seguir.    
      Acho que este é um livro ensolarado, por mais contraditório que isso possa parecer, já que aborda a morte. Sim, a leitura é monótona às vezes, muito detalhista e chega a ser até arrastada. Mas compensa cada página para leitores que se interessam por questões humanas. Esperava muito pesar, porém o livro me pareceu alegre e cheio de esperança como uma fábula. Mesmo nos momentos mais densos, o tom é de humor, por vezes negro, ácido, mas sempre presente. Talvez seja esse o desafio: rir das coisas que nos metem medo, como me sugeriu certa vez uma sábia amiga psicóloga.
      "Tempo é Dinheiro" não gira somente nas adversidades da família de Shep, mas envolve um núcleo secundário, a família de seu melhor amigo. Fala de pessoas, do que realmente somos para além do nosso mundinho particular. Fala de amor, medo, coragem, verdade, abordando o casamento sob uma ótica nova, o lado B da promessa de sermos fieis "na saúde e na doença, na alegria e na tristeza" que ninguém quer experimentar.
      Shriver, mais uma vez, não me decepcionou.

      ("Tempo é Dinheiro", Lionel Shriver. Editora Intrínseca)  

      Um começo


      Desde criança gosto de ler. Na infância, os livros foram professores eficazes, companheiros de viagem, mestres, gurus, sempre presentes, ao alcance das mãos. Na adolescência busquei neles as respostas para minhas dúvidas, os esclarecimentos para apaziguar minha ansiedade, um mapa do viver que apertava a campainha e eu, consternada, ficava entre atender ou não. Época do vestibular. Jornalismo. Descartei Letras porque nunca pretendi seguir a profissão sonhada por minha mãe, o magistério. Jornalismo tinha tudo junto e misturado: aventura, coragem, ousadia, novidades, informação e, claro, o delicioso ofício de escrever. Pela primeira vez, eu subvertia a ordem e invertia a posição: de leitora a escritora. Mas livro e jornal são coisas bem diferentes, aprendi isso faz tempo e só assumi recentemente. 
      Também descobri que o Jornalismo real pode ser bem diferente do idealizado por uma jovem romântica. Com o tempo, descerraram-se os véus das ilusões e eu me vi com um desejo crescente de por fim a um ciclo profissional. Flertei com a fotografia, com a publicidade e comecei a assumir a literatura.   
      De uns anos para cá, o sonho de ser escritora gritou dentro do meu cérebro analítico, doutrinado pela fórmula de Kipling (¹). E, surpresa, constatei que já não conseguia ir além do lead (²). Resolvi então, talvez de forma inconsciente, voltar a ser leitora. Contumaz. Voraz. Compulsiva. 
      Essa avidez pela leitura coincidiu com momentos importantes da minha vida. Não adianta: corro para os livros quando a coisa aperta. Tento buscar respostas para a vida no papel. E enquanto subiam as pilhas dos volumes que chegavam pelo correio, aumentava minha ansiedade e meu desejo de escrever. Livros, não jornais. Diante do embrião de biblioteca que brotou no meu criado-mudo e se espalhou pelo quarto, pela sala e agora ocupa uma biblioteca de verdade, meu sonho começou a tomar forma e fazer sentido. Com esse blog, a paixão pela leitura e pela escrita fluirá como um rio para atingir outras tantas pessoas com histórias semelhantes.
      Lendo muito - mas só à noite, quando as crianças estão dormindo e consigo um tempo só meu, recomecei a escrever de forma livre, criativa, literária, como um bebê que engatinha. Sem regras. Sem crivos. Liberta, enfim. Contos, poesias, crônicas, romances que um dia publicarei.
      Assim criei esse blog. Não com a pretensão de ser crítica literária, longe disso. Nem com o desejo de notoriedade (talvez inconsciente?). Pode ser mais uma resposta para mim mesma diante dos pacotes semanais que implicam em gastos no cartão de crédito, mea culpa. Na verdade, não sei. 
      Costumo desistir de algumas coisas que gosto e quero. Talvez desista desse blog. Mas, enquanto ele pulsar dentro de mim, espero contribuir para incentivar a leitura, a troca de ideias e de saberes, jogar luz em nossos dilemas ou simplesmente relaxar, curtir. 
      Biblioteca de Abajur nasceu assim. Um projeto lânguido, gostoso e preguiçoso como uma rede, tranquilo como alguém que lê todas as noites antes de dormir.

      (¹) No Jornalismo há uma regra básica em que o primeiro parágrafo deve responder às perguntas "o que, quando, quem, onde, por que e como". Em inglês,  cinco letras "w" e uma "h". A fórmula foi atribuída a Rudyard Kipling, autor e poeta britânico, ao escrever uma fábula infantil.
      (²) Lead é o começo de uma matéria, que deve conter as principais informações ao leitor. No Jornalismo, os dados menos interessantes ficam para o final, seguindo o modelo de pirâmide invertida.