terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Precisamos falar sobre o Kevin - Lionel Shriver



Enrolei muito até decidir comprar o livro "Precisamos falar sobre o Kevin", bem antes de saber que havia a versão em filme (que, aliás, não gostei). Nunca tinha lido nada de Lionel Shriver, que hoje está entre minhas autoras preferidas, e este seu sétimo romance me foi marcante. Demorei porque achei o tema chocante demais: a sinopse falava da mãe de um garoto que cometeu um massacre na escola. Por fim, comprei e digo-lhe: este livro me abalou tão profundamente que não consegui seguir a sequência habitual de leitura. Comecei, avancei, parei em momentos de indignação com a personagem principal, a mãe, chamada Eva. Prossegui, parei por sentir tão claramente situações que eu mesma enfrentei no papel de mãe, avancei novamente. Levei um longo tempo até o final surpreendente.
Para quem gosta de leitura ágil, "Precisamos falar sobre o Kevin" pode parecer cansativo porque Shriver esmiúça, disseca, põe o dedo no fundo da ferida que é ter um filho que contraria todas as suas expectativas. Em longas cartas ao pai do menino, com quem casou, Eva conta detalhadamente suas origens, como era sua vida antes do casamento, o período de namoro, a união, a gravidez e o nascimento de Kevin ao mesmo tempo em que relata como conseguiu sobreviver à tragédia, as humilhações, a culpa, a reflexão de quem permanece atônita diante do impossível que se revela real.
Nestas narrativas, a leitora (porque acho que é um livro escrito sobre e para mulheres, apesar de ser interessantíssimo que os homens o leiam) se reconhece num retrato atual dos pequenos dramas da vida cotidiana, com um pé na carreira, outro na família; entre o amor pelo marido e a revolta por sua falta de participação; a idealização da maternidade e a realidade inesperada; os sonhos e as renúncias, inclusive de partes de si mesma, que tem de fazer em nome do amor incondicional. 
No fluxo perfeito da narrativa, Shriver faz rir com seu humor ácido, por vezes negro, e também chorar. Acho que ela tem a rara habilidade de descrever os sentimentos que nós, mulheres, tentamos ocultar de nós mesmas e do mundo, sentimentos que vozes internalizadas gritam ser negativos, como a raiva, a inveja e a cobiça. 
Em "Precisamos falar sobre o Kevin", percebemos uma mãe insatisfeita e aflita, perdida e sobrecarregada, distante de si, e seu encontro com um bebê diferente, em quem projeta suas próprias dificuldades emocionais. Qualquer reação da criança revela um lado de si mesma que ela não quer encarar (lembrei agora do livro chamado "Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra", de Laura Gutman, para quem quer se aprofundar). O relacionamento conturbado de Eva com o filho, que cresce, é acentuado com a chamada crise da adolescência e o nascimento da filha, Celia, a doce menina que veio restaurar a confiança de Eva em si mesma e confirmar a negatividade congênita de Kevin. A situação nesse relacionamento disfuncional vai se complicando cada vez mais, tendo como apogeu o crime praticado por Kevin e a frieza do adolescente diante de seu ato. Intenso, denso, trágico.
Não é uma leitura fácil. Chorei muitas vezes e fiquei perplexa com a profundidade deste livro que ganhou o Prêmio Orange de 2005. Talvez por isso não tenha gostado do filme, apesar do papel de Eva ter sido interpretado pela talentosa Tilda Swinton, indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz. São questões demais para os limites de uma filmadora.
Pode uma mãe ter amor e ódio por seu filho? Até onde vai e qual a real face do amor de mãe? Perguntas que me fiz ao terminá-lo. Concluí que Shriver fala de amor materno, mas não do amor mitológico e cultural, aquele amor de cena de novela em que, depois um parto doloroso, a mulher chora de emoção e abraça seu filho perfeito. Eva desnuda o amor bruto, imperfeito, ambíguo, inteiro, que machuca e que, mesmo assim, contrariando todas as possibilidades, nos revela o melhor de nós mesmas. O amor da mãe que chora quando todos esperam que ela ria, que recusa os papéis sociais que a obrigam ter, que não consegue dar aos filhos tudo que eles precisam e ousa dizer, em alto e bom som: "Mãe não é divina; mãe é humana!".

("Precisamos falar sobre o Kevin", Lionel Shriver. Intrínseca)

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